quinta-feira, 1 de setembro de 2022

Down Among the Dead

Que a Core Design e o jornal britânico The Times haviam feito uma parceria e lançado um nível bônus para The Last Revelation todo mundo sabe, afinal o nível é (devidamente) difundido em virtualmente todo lugar. Mas a colaboração foi muito além disso: na edição de 27 de novembro de 1999, o jornal trouxe um encarte especial dedicado à aventureira intitulado A Girl Called Lara.

Alguns colecionadores possuem uma cópia desse encarte, como é o caso das administradoras do portal Virtual Lara que compartilharam fotos de todas as suas páginas. De maior interesse, em minha opinião, é que entre o conteúdo promovido pelo jornal estava o conto Down Among the Dead. Talvez seja apenas uma fanfic vangloriada, mas é fato que foi publicada em caráter quase oficial.

A história foi dividida em sete capítulos e publicada periodicamente nas páginas do jornal. Esse é o tipo de conteúdo que, infelizmente, se perdeu para o tempo — temo que, a essa altura, já perdemos muito mais do que sequer imaginamos. A autora do texto, Erica Wagner, foi contatada pelas gerentes de comunidade da Crystal Dynamics em algum momento no passado mas, infelizmente, não tinha o artigo completo para compartilhar.

Com um pouco de esforço, encontrei um banco de dados com cópias arquivadas de jornais antigos. A pegada é que apenas parte dos textos pode ser acessada sem o login de uma universidade ou biblioteca associada à plataforma. Agradecimentos ao portal Tomb Raider Arabia por partilhar o mesmo nível de obsessão e resgatar na íntegra os dois capítulos que localizei; agora, somados aos dois que já haviam sido publicados pelo Virtual Lara, temos mais da metade da história.

Apesar de incompleto, decidi fazer uma tradução livre do conto para publicar e arquivar aqui no blog Raider Daze. Com sorte, algum dia conseguiremos os três capítulos faltantes... 
 
[Atualizado em 19/05/2023:] Finalmente posso trazer o conto traduzido em sua totalidade! Além de realizar algumas revisões integrais do texto, tomei a liberdade de reescrever certos segmentos de forma a dar um melhor entendimento à história em nosso idioma. Desfrute! 

[ * * * ]
 
Down Among the Dead
— I —
 
Lara fez a volta ao redor da esquina e, bem como havia suspeitado, o bandido estava esperando por ela. Ela sentiu a adrenalina acelerar até as raízes do cabelo enquanto ele caminhava em sua direção, praguejando, mas ela fintou e pegou o cano de chumbo que havia escondido em suas costas. Ela atacou com toda sua força, mas ele também era rápido e conseguiu esquivar-se a tempo. E, num piscar de olhos, ela estava encarando o tambor de uma arma. Tudo ficou devagar. Ela pôde ver o dedo dele pressionando o gatilho, e ouviu o disparo, feito à queima-roupa, contra o seu peito.
 
"Mas que inferno," Lara resmungou, empurrando o teclado do computador para o lado. Esses jogos eletrônicos eram uma porcaria. De qualquer forma, ela tinha coisas melhores para fazer. Em sua frente estava uma montanha de papéis, livros e arquivos — ela estava os separando, tentando decidir qual seria o assunto de seu próximo livro. Foi Fácil Para Scott: Uma Aventura na Antártida?[1] Rolando por Bornéu? Nada parecia adequado. Ela se levantou e preparou uma xícara de café, olhando pela janela para o jardim da casa estirado abaixo dela. As folhas estavam começando a mudar: suas adoradas rosas haviam fechado e caído, dormentes para mais um inverno. Nessa época, ela sempre preferia sair da Inglaterra em vez de ficar sentada em sua mesa.
 
Bem, talvez existisse uma forma de fazer isso... Ela pegou a carta que havia deixado sobre a mesa no dia anterior. A carta tinha sido enviada, regularmente como em todos os outros anos, por seu padrinho Jeremy, o homem responsável por muitas de suas aventuras.[2] A cada ano, ele a levava em uma viagem diferente, mas o preço da passagem era sempre o mesmo: ela precisava resolver os enigmas que ele apresentava para assim descobrir o ponto de partida. Poderia ser em qualquer lugar do mundo, e o desafio era sempre exigente.
 
O primeiro dos enigmas estava agora em sua frente. Não era difícil para Lara encontrar o interesse em resolvê-lo, mas sua preocupação quanto ao seu próximo passo profissional ainda pairava sobre sua cabeça. Ela não era mais uma garota, afinal, e ela precisava de uma fonte de renda. Ela curtia todo o lance de exploração de tumbas, mas isso não seria o bastante para pagar pela manutenção desse lugar. Ela suspirou e bebeu um gole do café. Enquanto voltava para sua mesa, quase tropeçou em um livro que havia caído de uma pilha nada organizada. Tesouros do Museu de Cairo.[3]
 
Ela se ajoelhou. Ela havia esquecido que possuía esse livro. Ela folheou as páginas, ainda pensando no enigma de Jeremy. A conjunção de ambos parecia um toque de sorte do acaso. Enquanto ela observava as imagens de pedra e ouro, de lazulita e alabastro, tudo fazia com que ela quase pudesse sentir a poeira e a energia do Egito. Ela fechou o livro rapidamente; ela acabara de ter uma ideia.
 
* * *
 
A carta original não existia mais. O arquivista havia lhe explicado que, uma vez que estivesse digitada, ela era desprezada. A carta foi publicada no jornal The Times em março de 1923. "A morte surge em asas para aquele que entra na tumba de um faraó," a novelista Marie Corelli lembrava aos leitores do jornal, ávidos por notícias do que seria revelado na recentemente aberta tumba do garoto-rei Tutancâmon. De acordo com ela, essa advertência constava em um texto arábico em sua posse. E, mesmo assim, esse alerta teria passado despercebido não fosse por Lorde Carnarvon, — patrono do descobridor da tumba, Howard Carter —, ter morrido poucos dias depois.[4] A Maldição dos Faraós!
 
Quanta bobagem, Lara pensou enquanto examinava as caixas que o arquivista havia deixado em sua frente. Em 1922, o jornal The Times pagou cinco mil libras esterlinas pela cobertura da maior descoberta arqueológica do século. Notícias do Vale dos Reis chegavam por mensageiros até Luxor naqueles dias — Lara suspirou, pensando como a vida antes de e-mails e modens parecia mais emocionante. Com suas paredes de tijolos grossos e janelas pequenas barradas por grades, o arquivo estava silencioso como uma tumba nessa tarde chuvosa de Londres.
 
Ela sabia que era atrevimento simplesmente aparecer assim. Para sua sorte, um tio que ela não via há anos esteve em Oxford, lendo clássicos com o editor. Ela já havia se encontrado com o editor algumas vezes e ele parecia um homem agradável. Sentada em um sofá grande no seu escritório mal iluminado e com teto baixo, ela teve a sensação de que ele não sabia o quê pensar sobre ela. Mesmo assim, ele havia a deixado entrar no arquivo. Antes de sair, ela caminhou até as prateleiras e puxou um volume original em grego de Xenofonte que, ela observou, já pertencera ao "Serviço de Inteligência do The Times".[5] Definitivamente, aqueles eram os bons tempos. Ela rapidamente leu o parágrafo de abertura em voz alta; seu grego não estava tão enferrujado quanto ela pensava. Isso, de qualquer forma, fez o editor sorrir.
 
A morte surge em asas para aquele que entra na tumba de um faraó. Ela sentou-se com um lápis entre os dentes, pensando até onde tudo aquilo poderia levar ela. O arquivista esticou sua cabeça pela porta. "Está tudo certo aí dentro?", perguntou.
 
"Sim, tudo bem, obrigada," ela respondeu. "Esse é todo o material?" De alguma forma, maldição ou não, ela ainda não tinha encontrado o que estava procurando.
 
"Acho que sim," ele disse. Ele parecia ser um rapaz bem-educado, Lara pensou. Ele disse que era novo no emprego e que estava ali há cerca de seis meses. Lara não aguentaria ficar enfiada em escritórios empoeirados o tempo inteiro. Ele contou as caixas sobre a mesa. "Espere aí," disse. Ele foi até os fundos e, após alguns minutos, retornou com outra caixa, menor do que as demais, feita de madeira e não de papelão. "Engraçado," disse, "achei que fosse parte desse lote." Havia uma pequena etiqueta na caixa, cuidadosamente feita com tinta preta em escrita antiga: '1923' era tudo que dizia. "Eu não olhei dentro, entretanto." Ele se curvou e soprou a poeira da tampa. "E parece que ninguém fez isso... pelo menos, não recentemente." Ele sorriu para ela. "Toda sua, então." Ele deixou a sala, fechando a porta atrás de si.
 
Cuidadosamente, Lara abriu a caixa, colocando a tampa ao lado. Dentro havia um maço de papéis, desorganizados e amarelados. Todas as outras caixas estavam divididas em pastas, bem organizadas. Na verdade, quando ela as tinha visto ficou decepcionada, pois sabia que não encontraria nenhuma coisa nova em algo tão bem organizado. Mas agora... Com cuidado, ela começou a olhar o material. A maior parte da caligrafia era de Howard Carter, ela agora era capaz de identificar, e ocasionalmente ela via a assinatura falhada de Lorde Carnarvon. Muitos dos papéis eram registros: colunas de números e de nomes de fotógrafos, de jornalistas e de agências de notícias. Entre os papéis, ela notou algo diferente, escondido no fundo da caixa. Era um pequeno caderno feito a mão. Media cerca de oito por dez centímetros, feito de papel grosso e amarrado com cordão encerado. Sua capa estava manchada, mas não identificada. A primeira página estava em branco. Na página seguinte, alguns números: pareciam contas confusas. Então, um esboço ou outro, pareciam ser detalhes de joias ou estátuas. Um olho de Hórus encarava Lara. Na página seguinte, a caligrafia de Carter novamente, desta vez distorcida e apressada. Ela começou a ler:
 
Eles dizem que essa é a descoberta arqueológica mais importante que já foi feita no Egito, e talvez até mesmo no mundo inteiro, e sei que isso é certamente verdade. Mas, mesmo assim, estou convencido de que há algo a mais, possivelmente de ainda maior importância. O que eu encontrei até agora pode muito bem me levar até a próxima, se apenas eu pudesse...
 
"E então?"
 
O arquivista. O coração dela estava palpitando. Lentamente, ela fechou a caderneta, que cabia quase que inteira na palma de suas mãos. "Bem, bem." Ela disse rapidamente, tentando não expor sua animação. "É, hmm, mais do mesmo, sabe... contas, registros, esse tipo de coisa."
 
"Nada empolgante?" 
 
Lara sorriu, de forma nada convincente e ela estava ciente disso. "Na verdade, não." 
 
O arquivista deu de ombros. "Bem, você sabe onde me encontrar se precisar de mim," ele disse.
 
Depois que ele saiu, Lara rapidamente reorganizou os papéis, empilhando todos dentro da caixa. Ninguém notaria a falta da caderneta. Bem, ninguém notaria, certo? Ficou guardada ali todos esses anos, sem fazer nada por ninguém. Ela deveria ficar com a caderneta, poderia ser útil. Sorrindo, ela a guardou no bolso interno de sua jaqueta de couro. Ela estava se sentindo bem, como há meses não se sentia.
 
[ * * * ]
 
— II —
 
Caminhando pela rua do museu, passando na frente de pequenas lanchonetes italianas e lojas de lembrancinhas, Lara checou seu relógio e deu um tapinha no bolso, para confirmar que a caderneta ainda estava em segurança. Seis horas em ponto em um dia de outono e já estava quase escuro; a respiração de Lara emplumava-se em sua frente e desfazia-se como esperança. Esperança... seria loucura pensar que ela estava no caminho certo? Bem, ela logo descobriria.

O museu estava fechando. Um segurança a parou na entrada, mas ela disse que tinha horário marcado e ele a deixou entrar. Ela caminhou contra a onda de visitantes que saíam do museu, passando pela fachada repleta de colunas do prédio, cujo aspecto visual era arruinado por um andaime. Na escuridão, gruas pareciam assombrar o local como se fossem criaturas pré-históricas.

Um guarda a escoltou através de longas galerias e corredores vazios. Ela conseguiu ver, de relance, os Mármores de Elgin,[6] com um suave brilho azul lunar na escuridão parcial em que se encontravam, os rostos de pedra com olhares vazios em sua direção. O guarda a deixou em um corredor estreito, em frente a uma porta de madeira. Ela bateu.

"Um momento, por favor!" O grito abafado, no mesmo sotaque americano que ela tinha ouvido ao telefone, foi seguindo por um tumulto — o som, ela adivinhou com certa familiaridade, de alguém organizando coisas às pressas. E então a porta se abriu.

"Senhorita Croft, eu imagino. Como vai? Alvin Blackmore, prazer em conhecê-la."

Dr. Alvin Blackmore III estendeu sua mão grande, ato que ela retribuiu, e ele a apertou vigorosamente, esmagando seus dedos com mais força do que ela gostaria. Ele era muito mais alto que ela, devia medir cerca de 1,95 m, e apesar de ela acreditar que ele estivesse na casa dos 60 anos, ele tinha um porte físico saudável, com peitoral e ombros largos. Na altura dos olhos dela estava uma listra vívida da camisa feita com um caríssimo algodão egípcio. Logo acima, o pescoço dele estava decorado desajeitadamente por uma gravata-borboleta. Seu cabelo era bem branco, e as bochechas eram borrachudas. Ela conseguia imaginá-lo, décadas atrás, como um zagueiro estelar no time de Yale — pelo que parecia, quando ela espiou rapidamente os diplomas pendurados na parede atrás dele. "Entre, entre," ele disse. "Por favor, sente-se."

Uma grande mesa de carvalho ocupava um canto do pequeno escritório, que estava repleto de armários de arquivos e outras mesas menores cobertas por papéis; pilhas e mais pilhas de papel sob o peso de pequenas figuras de granito e alabastro. Ela notou que uma delas era esculpida com o encantador rosto de um babuíno, adequadamente o bastante.

Blackmore removeu os últimos papéis do assento que ele tinha indicado para ela. "Posso guardar seu casaco?", ele ofereceu.

"Estou bem assim, obrigada." Lara disse. "Obrigada por me atender."

"Bem, qualquer amigo do professor Gilbert é amigo meu," ele riu. "Agora," ele disse enquanto sentava-se no outro lado de sua mesa, "você tinha falado algo sobre uma caderneta?"

Lara colocou a mão na jaqueta e puxou o pequeno caderno. Ela o entregou e observou enquanto ele folheava as páginas. "Interessante," ele disse, quase que para si próprio. "A caligrafia é do Carter." Ele olhou para ela, levantando uma sobrancelha. "Proveniência?", ele questionou.

"Não posso dizer." Ela olhou diretamente nos olhos dele.

Ele balançou a cabeça. "Ora, ora, ora." Ele olhou para ela, de uma forma que poucos homens faziam: ela sabia que o quê ele estava analisando estava acima da linha de seu pescoço. "Gilbert disse que você tinha um quê de pirática." Ele fechou o caderno. "Mas estritamente falando, eu não deveria sequer olhar para isso. Eu poderia arranjar grandes problemas, sem falar no que poderia acontecer contigo, minha cara." Ele sorriu.

"É sobre outra tumba," Lara acrescentou. "Tenho certeza de que é autêntica, mas eu precisava mostrar para outra pessoa. Eu acho que pode conter... coordenadas. Ele fala sobre a viúva de Tutancâmon, Anquesenamom.[7] Ela tinha apenas 25 anos quando ele morreu e ninguém sabe onde ela foi enterrada. Parece que ele acreditava que a tumba dela pudesse conter um segredo, algum tipo de poder. Ele fala sobre uma joia que poderia conferir vida eterna — vida eterna de verdade, e não o pós-vida da mitologia egípcia. Eu sei que parece loucura, eu não acredito que seja o caso, mas eu preciso de ajuda para decifrar isso. Ajuda de alguém que eu possa confiar."

"Você não me parece do tipo que confia nos outros."

"Às vezes eu preciso," Lara disse, "mas eu fico bem irritada quando essa confiança é traída."
 
"Entendo." Ele escorou-se na cadeira e olhou para a janela. "Eu gostaria de dar uma olhada mais a fundo nisso." Ele olhou para o relógio. "Talvez podemos nos encontrar novamente amanhã?"
 
"Você pretende ficar com a caderneta?"
 
"Não sei como poderia dar uma olhada mais a fundo de outra forma."
 
Lara se ajeitou no assento, desconfortavelmente. Ela não tinha feito uma cópia da caderneta, não teve tempo para isso.
 
"Olhe," Blackmore disse. Ele se levantou e pegou uma das estatuetas que estava usando como peso de papel. Media aproximadamente 15 cm e era esculpida delicadamente. Era uma imagem de Ísis, protetora dos mortos. A lua coroava sua cabeça e seu filho, Hórus, estava envolto em seu colo. Ele a entregou para Lara. A pedra era fria e suave. "Por que você não fica com isso? Considere como garantia."
 
Ela observou a figura em sua mão. Parecia uma ideia sábia, e ela conseguia determinar a antiguidade em suas mãos. Ela pensou em tudo pelo que essa estatueta já tinha passado. "Imagino que você não encontraria uma dessas na lojinha do museu," ela disse.
 
Blackmore pôs uma mão sobre o ombro dela. "Podemos dizer que não," ele riu. "Então... Nos vemos amanhã? Às 11 horas? Vou preparar um café turco, o quê acha?"
 
"Seria ótimo," Lara disse. "Mal posso esperar."
 
Ele colocou a caderneta no bolso superior de seu casaco. Ele apertou a mão dela novamente, com a mesma firmeza de antes. "Foi um prazer fazer negócios com você, senhorita Croft," disse. "Eu acho que essa pode ser uma parceria bem proveitosa."
 
"Assim esperamos," Lara concordou.
 
Ela disse que sabia o caminho até a saída e, quando saiu do escritório, fez questão de caminhar pelas silenciosas galerias egípcias. Ela olhou por cima dos ombros antes de tocar a superfície dentada da Pedra de Roseta.[8] A pequena Ísis pesava em seu bolso. Ela parou em frente a uma estátua em tamanho real de uma mulher com cabeça de leão, sentada: Sequemete, a deusa responsável pela destruição de centenas de inimigos do deus do sol, Rá. No colo da estátua, alguém havia deixado um buquê de flores soltas, frésias e flores de íris brancas. A oferenda parecia dar vida à estátua, de certa forma — Lara ficou arrepiada e se recusou a encarar o olhar da estátua. Ela apressou o passo para sair do museu vazio sob o amarelado anoitecer de Londres.
 
Foi apenas quando chegou em casa que notou que uma página da caderneta havia se desprendido do miolo e ficado em seu bolso. Bem, não era um problema, ela poderia mostrá-la para Blackmore na manhã seguinte.
 
Era quinze para as onze quando ela chegou ao museu na manhã seguinte, e ainda era claro apesar das nuvens de chuva no céu. Ela subiu correndo os degraus de pedra e foi em direção ao escritório de Blackmore, mas uma guarda a interrompeu quando estava prestes a cruzar uma placa que dizia "empregados apenas". "Eu tenho horário marcado com o doutor Blackmore," ela avisou.
 
"Claro," a guarda respondeu com um olhar frio, "venha comigo." Ela não levou Lara até o escritório de Blackmore, cuja porta estava fechada, mas sim para a porta seguinte, logo ao lado, na qual bateu antes de abrir. "Tem alguém aqui que quer ver o doutor Blackmore," ela anunciou.
 
Uma mulher levantou-se de trás da mesa, e Lara direcionou seu olhar para ela. "Eu sou Lara Croft, estou aqui para falar com o doutor Blackmore. Há algum problema?", perguntou. A mulher acenou com a cabeça e Lara se surpreendeu quando percebeu uma lágrima escorrendo pelo seu rosto. 
 
Lara sentou-se na frente da mesa da mulher, com uma xícara de chá esfriando em sua frente. Um ataque do coração? Como ele poderia ter tido um infarto? Ele parecia tão saudável! Frances Brock — esse era o nome da mulher, uma espécie de curadora assistente, Lara imaginou — contou para Lara da forma mais gentil possível, mas, ainda assim, Lara estava chocada. No escritório? Em casa? Lara indagou. Aparentemente, foi em casa: ele conseguiu chamar uma ambulância, mas estava morto quando chegou ao hospital. Assim que Brock disse isso, o telefone tocou. Ela atendeu, balançou a cabeça algumas vezes, parecendo cada vez mais ansiosa, e então desligou. "Você pode me dar licença por um momento?", pediu e rapidamente saiu do escritório.
 
Bem, que azar tremendo. Lara levantou-se e caminhou pela sala. Ela espiou o corredor. Não havia sinal de ninguém. Ela ouviu. Nada. Não havia sequer o som de passos, e o escritório de Blackmore estava logo ali... 

Sem pensar duas vezes, Lara saiu do escritório de Brock e tentou abrir a porta de Blackmore. Estava aberta.

Ela entrou.

[ * * * ]

— III —

Haviam papéis espalhados para todos os lados. Será que alguém havia revirado o lugar? Lara tinha suspeitas, mas era difícil dizer: não era um lugar particularmente organizado antes e, quem sabe, talvez Blackmore estivesse procurando por algo nos papéis que pudesse ajudar com a caderneta. O sistema de organização dele parecia ser tão bom quanto o dela, o quê poderia resultar em uma tremenda bagunça. Vestindo novamente suas luvas, ela levantou papéis e livros em busca de um sinal da...

E ali estava, bem na frente dela: a caderneta! Ela estava parcialmente coberta por um Post-It amarelo colado sobre sua capa, mas era impossível não reconhecê-la. Lara se segurou para não rir alto. Ela analisou o recado antes de removê-lo e guardá-lo em segurança entre as páginas; estava simplesmente escrito 'Haggarty?'. Não era muito, mas, ainda assim, ela manteve esse nome em mente. Rapidamente recolheu a caderneta e a enfiou no bolso e, mais uma vez, saiu do museu. Quando chegou em casa que ela percebeu o que havia acontecido à caderneta. Agora, enquanto estava sentada à mesa da cozinha sob a fraca luz do anoitecer, com a cabeça apoiada em suas mãos. Páginas estavam faltando, cuidadosamente removidas com uma lâmina afiada de forma que o quê permaneceu, ali na sua frente, era apenas metade do que havia antes, e ela estava certa que estes restos seriam inúteis.

"Acredito que encontrei o local que deveríamos escavar," ela leu. "Não é longe de onde fizemos nossa grande descoberta; daquele ponto, devemos virar para o norte e então —" e ali a página estava cortada. Maldição! Ela deu um murro na mesa, e folheou para outra página mutilada. "Então," iniciou outra leitura, "quando a tumba finalmente for encontrada, acredito que os segredos contidos no interior serão de uma magnitude que farão o mundo ponderar de forma que nunca o fez antes. Apesar de eu achar isso difícil de acreditar, tudo indica que, no final, Anquesenamom foi capaz de usurpar o falecido vizir e posteriormente faraó. Sim, um poder —" e aqui, outra página estava faltando. Ela voltou uma ou duas páginas, onde leu que "o tesouro que foi encontrado na tumba do menino rei era sem igual, mas acredito que tesouros ainda maiores possam ser encontrados abaixo das areias egípcias..."

Mas o quê Lara poderia fazer? Esse não poderia ser o fim, ela se recusava a aceitar isso. Talvez o falecido doutor Blackmore ainda pudesse ajudá-la afinal. De qualquer forma, ao menos ela tinha encontrado uma pista para seguir.

* * *

A empregada filipina colocou a bandeja laqueada sobre uma baixa mesa de vidro; ela se abaixou para servir duas xícaras de chá chinês em uma porcelana tão fina que Lara podia ver o nível do líquido subindo. Um cheiro delicado de rosas flutuou até ela.

"É muita gentileza sua me atender, senhorita Blackmore," disse Lara. Ela se virou para a janela, "devo dizer que sua paisagem é uma distração maravilhosa." Do lado de fora da janela, o Central Park estava estirado abaixo delas, as folhas amareladas e douradas de suas altas árvores faziam um contraste com o brilhante céu de outono. O reservatório reluzia em tons prata, ela mal conseguia dar forma aos atletas correndo regularmente ao seu redor como se fossem brinquedos. Também abaixo, as escadas do Museu Metropolitano estavam abarrotadas de pessoas, tanto turistas como nova-iorquinos. Lara sempre adorou vir para cá.

"Sim, é esplêndida, não é?", disse a anfitriã. "Eu jamais poderia deixar a cidade. Sempre senti pena de meu irmão, vivendo na velha e cinzenta Londres — ah, me perdoe, senhorita Croft."

"É claro," Lara disse. "Mesmo porque eu concordo com você quanto à Londres. Eu pessoalmente nunca vivi lá, não seria capaz."

Cornelia Blackmore tomou um gole do seu chá. Ela era uma mulher alta, talvez um pouco mais velha que seu irmão, Lara palpitou, mas provavelmente não muito. Tinha traços fortes e elegantes. Seu cabelo tinha um tom prateado escuro e ela vestia calças pretas e um pulôver de caxemira na cor creme. Pequenos diamantes brilhavam em suas orelhas, mas o diamante que reluzia no terceiro dedo de sua mão direita — senhorita Blackmore, afinal — jamais poderia ser descrito como pequeno. Tudo isso, o apartamento na Quinta Avenida, a grandeza silenciosa da decoração... os Blackmores realmente tinham dinheiro. Ela lembrou-se da camisa fina do doutor; não se compra esse tipo de coisa com o salário de um curador.

"Eu não sei como posso ajudá-la, senhorita Croft," Cornelia falou, sentada delicadamente em um sofá do século XVIII coberto com uma pálida seda cor-de-rosa. "O que você gostaria de saber?"

"Não tenho certeza, na verdade," Lara admitiu. Talvez tudo isso fosse um erro, talvez ela parecesse uma tola. Sentada em frente à senhorita Blackmore, ela mordiscou um biscoito polvilhado em açúcar. "É só que a morte de seu irmão pareceu um tanto... inesperada. Ele parecia ser um homem bem saudável."

"Você conhecia bem o meu irmão, senhorita Croft?". Lara notou que o canto da boca de Cornelia subiu ligeiramente, e rapidamente sentiu seu rosto corar.

"Nós havíamos acabado de nos conhecer," Lara respondeu. "Eu mal o conhecia." Ela não disse nada sobre a caderneta. Por que deveria?

"Eu posso dizer o mesmo," a senhorita Blackmore disse. "Nós nunca fomos próximos, mesmo quando éramos crianças. Não sei, nunca tivemos muito em comum — exceto que nós dois odiávamos a babá," ela sorriu brevemente. "E então ele começou a ir para tudo que é lugar, eu não conseguia acompanhar! Peru, Egito, Sudão... Eu recebia cartões-postais de vez em quando, sabe. Ele sempre estava prestes a encontrar algo importante, ou assim ele dizia. Parece que nunca deu em nada." Cornelia baixou o olhar para o interior da xícara em suas mãos. "Ele me lembra o pai, eu acho," ela finalmente disse. "Eles eram bastante parecidos, sempre em busca de uma aventura, sempre querendo mais de seja lá o que for. Meu pai costumava caçar animais grandes, mesmo depois que a África foi transformada num parque gigante, sabe. Se você pagar o bastante, pode encontrar alguém disposto a te levar para caçar um leão. O pai se afogou quando saiu com o iate sozinho tempestade adentro. Ele estava fora de si, mas ninguém seria capaz de impedi-lo. Era a mesma coisa com dinheiro; ele sempre queria mais pois nada nunca era o suficiente, e ele estava sempre assumindo riscos para conseguir mais... riscos lunáticos." Ela então gesticulou sua mão, com seus dedos longos, para o apartamento. "Ainda assim, alguns desses riscos deram resultados, então acho que eu deveria ser grata. Mais chá?", ofereceu. Lara sacudiu a cabeça. "Tenho certeza que se nosso pai não tivesse morrido no barco, ele teria tido problemas do coração, como meu querido falecido irmão. É o tipo de morte que se espera de um homem assim, não é?"

"Talvez," Lara disse.

"Não sei o que mais posso dizer. Se você quer saber sobre o testamento dele, ele não deixou nada — exceto dinheiro, é claro. Só estou dizendo isso, pois você não parece o tipo de pessoa atrás de dinheiro."

Lara voltou a ficar vermelha. "Não, não estou," ela afirmou. "Eu estava... Eu o conheci profissionalmente, como citei no fax. Só que nós temos... tarefas inacabadas."

"Bem, temo que você percorreu uma longa distância por nada, lamento que não possa ajudar mais." Elas ficaram em silêncio por um momento. "Pois bem, a Rosa vai abrir a porta para você," então ela tocou um pequeno sino na mesa e Rosa, a empregada filipina, surgiu. "Leve a senhorita Croft até a porta, Rosa, por favor. Sinto muito, senhorita Croft, que essa foi uma jornada em vão. Adeus." Ela se inclinou para apertar a mão de Lara; o aperto era tão firme quanto Lara imaginou que seria.

Naquela noite, de volta ao seu quarto no Royalton, Lara não conseguia dormir, e não era o barulho da cidade que a mantinha acordada. A cabeça dela estava agitada com pensamentos incoerentes; ela tinha certeza que estava formulando algo que parecia não se esclarecer. Finalmente, cansada de virar de um lado para o outro, ela levantou da cama e se vestiu, calçando um pesado par de botas e amarrando firmemente seu cabelo. Tinha apenas uma coisa que ela podia fazer numa hora dessas. Exercício. Uma limpeza expressa para o cérebro.

Lara desceu do metrô na parada do Park Place. Nova Iorque sempre foi um lugar impressionante — mesmo às três horas da manhã o local ainda estava repleto de pessoas que pareciam estar indo para o trabalho. Ela caminhou rapidamente em frente à prefeitura escurecida. O gigantesco prédio Woolworth Building estava sempre atrás dela, com seu formato alongado de catedral perfurando os céus. Depois de passar pela prefeitura, ela sentiu seus passos ficarem mais leves quando chegou na ancoragem da Ponte de Brooklyn. Agora sim, ela estava no lugar certo.

Ela seguiu em direção ao arco duplo das torres de Nova Iorque, seu coração batendo cada vez mais forte conforme ela subia acima do rio. Os cabos principais, cada um com quase 60 cm de largura, subiam por uma fenda na calçada; primeiro até a altura de seus tornozelos, depois até os joelhos, e então continuavam a subir, até o topo das torres, por onde atravessavam grandes estruturas metálicas, mantendo a ponte suspensa. Ela rapidamente saltou sobre um cabo e começou sua escalada. O vento ficou mais forte, jogando seu rabo de cavalo ao redor do pescoço. Ela respirou fundo. Cabos mais finos subiam ao seu lado, e ela segurou-se neles para manter o equilíbrio, sentindo o aço gelado em seus dedos.

Havia apenas um obstáculo nessa escalada — além da possibilidade de ser vista e um esquadrão de veículos ser acionado para retirá-la dali —, e era um portão com cerca de 15 m ao longo do cabo, trancado, parafusado e protegido com longos espinhos para impedir que qualquer um — bem, quase qualquer um — escalasse por ali. Não haviam escadarias entre as torres de pedra como existem nas torres de aço modernas. Os cabos eram a única forma para que os engenheiros e reparadores subissem. Esse era o melhor trajeto para caminhar na cidade, Lara decidiu. Ela teve um breve susto quando sua jaqueta enroscou em um dos espinhos do portão e ela quase escorregou, mas o medo deu-lhe um novo impulso para se reequilibrar no cabo largo. Ela subia em direção aos céus, onde podia ver algumas fracas estrelas sobre o Brooklyn, e seguiu o cabo, com um pé na frente do outro, até que chegou à pequena escada que subia até o topo extremo da torre, 84 metros — e 30 centímetros — acima do rio East. De um lado, Manhattan brilhava e queimava feito Oz; do outro, Brooklyn fumegava de forma mais estatal e menos espalhafatosa. E aqui, no topo, Lara novamente ouviu a voz de Cornelia Blackmore ecoando em sua cabeça: Ele era exatamente como o pai... Nada nunca era o suficiente, e ele estava sempre assumindo riscos, riscos lunáticos... Ele sempre estava prestes a encontrar algo importante, ou assim ele dizia. Parece que nunca deu em nada.

O escritório bagunçado, as páginas removidas do caderno; independente do que Cornelia Blackmore tivesse lhe dito, Lara não acreditava que um ataque do coração era responsável pelo que aconteceu ao irmão dela. Mas, o quê realmente teria acontecido com Blackmore? Ela não estava mais perto de descobrir. "Maldição," pensou enquanto descia o cabo até a calçada e seguia para o metrô. Era passado das quatro da manhã quando ela chegou em seu quarto e, finalmente, ela estava cansada. Até que avistou um fax que havia sido posto por baixo da porta.

Papel timbrado. Hotel Luxor Hilton, em Nova Karnak, Luxor. Logo abaixo, em uma caligrafia que ela não reconhecia, a mensagem dizia: "Lara. Se importa em virar uma nova página? Se sim, embarque no próximo voo. Coisas maravilhosas."

Lara fez as malas, pagou a conta, e partiu antes do nascer do sol.

[ * * * ]

— IV —

Lara não perdeu tempo. Ela partiu de Cairo logo que chegou, deixando para dormir no trem a caminho de Luxor. Ela atravessou o rio para o Banco Oeste, mais próximo ao Vale dos Reis, e encontrou um quarto em uma pousada pequena e miserável. Ela soltou sua mochila e saiu em rumo ao Hilton. Era cedo no anoitecer e o dia estava começando a esfriar.

Ciente de estar em um país muçulmano, Lara vestiu calças longas e uma camisa com mangas compridas, e envolveu um lenço ao redor de seu cabelo.

Na entrada do hotel, o porteiro acenou de forma arrogante com a cabeça, mas ao menos a deixou passar. Uma rajada de ar condicionado, frio e úmido, a resfriou enquanto caminhava até a recepção.

"Sim?", questionou o recepcionista. Foi apenas neste momento que Lara pensou em quem deveria pedir para visitar.

Mas ela conseguia pensar em apenas um nome.

"Estou aqui para ver o doutor Blackmore," ela disse, lembrando a última vez em que disse essas palavras e imaginando o que poderia encontrar desta vez. "Acredito que ele esteja me esperando. Meu nome é Lara Croft."

"Sim, senhorita Croft," disse o recepcionista, com olhos sonolentos. "Pode subir. Quarto 611, por favor."

Lara atravessou a sala decorada — toda de mármore pálido e ouro — e entrou no elevador. O hotel estava bem quieto, algumas poucas pessoas estavam nos sofás de couro de cor creme no saguão, mas ela sabia que era o ápice da temporada de turismo, depois que o pior calor do verão já tinha passado. No sexto andar, ela desceu e fez seu caminho até o quarto de Blackmore. Bem, hora de descobrir o que estava acontecendo. Ela bateu à porta.

Silêncio. Ela bateu novamente. "Olá?", ela anunciou. Ainda silêncio. Ela girou a maçaneta e, para sua surpresa, a porta se abriu.

Se no escritório de Blackmore ela não tinha certeza de como ficaria uma sala completamente revirada, aqui não havia dúvidas. O quarto estava vazio e escuro; quando ela acionou o interruptor de luz, nada aconteceu — a energia provavelmente foi cortada. Mas puxando uma pequena lanterna do bolso de sua jaqueta, ela mirou o feixe de luz ao redor da sala e notou que as gavetas da sala tinham sido removidas, a porta do armário estava completamente aberta, o delicado escritório depredado — o quarto estava coberto por meias caras, montoeiras de panos abarrotados, papéis e livros rasgados.

Pisando gentilmente no carpete grosso, com o coração na garganta, ela viu as páginas de uma revista lustrosa balançar à brisa: uma janela estava aberta. Quando espiou pela janela, ela viu que dava acesso a uma saída de incêndio pintada de branco. Obviamente o intruso — levando Blackmore como seu refém, ela presumiu — tinha escapado. Para onde poderiam ter ido? Será que ele sabia a localização da tumba sem a metade da caderneta que estava com ela? Era uma possibilidade. O que ela poderia fazer? Ela se levantou, pensando, e o feixe da lanterna iluminou uma carteira de fósforos em uma pequena mesa de café, sobre a qual não havia mais nada. No meio do caos do quarto, parecia algo deliberado. Ela pegou a carteira. 'Íbis', dizia, apenas. Ela a colocou no bolso, fechou a jaqueta, saiu do quarto e desceu. O recepcionista a olhou com indiferença enquanto ela saía do elevador. "Obrigado," ela gritou, animada, e se dirigiu para a porta de saída. Não precisava contar para ele o que tinha acabado de ver. A última coisa que ela precisava era ser interrogada pela polícia de Luxor, que os céus a ajudem. "Ah," ela deu um passo de volta em direção ao balcão e puxou a carteira de fósforos do bolso, "sabe onde fica?"

O homem acenou com a cabeça e deu um endereço, não distante da pousada. Ele até mesmo desenhou um pequeno mapa para ela, e então ela saiu para as ruas labirínticas de Luxor. Ela caminhou de volta até a balsa do Nilo, então parou no deque, pensativa. Quem estava por trás disso claramente acreditava que os riscos nesse empreendimento valiam a pena.

Ela lembrou o que tinha lido sobre a jovem e teimosa viúva de Tutancâmon, a filha de Aquenáton e Nefertiti. O garoto-rei — cuja morte, de qualquer forma, permanecia um mistério — foi sucedido pelo seu vizir, Aí. Talvez Anquesenamom tivesse se casado com ele, talvez não; ela tinha procurado por outro marido por escolha própria, quando escreveu para o rei hitita, Supiluliumas, pedindo para que ele enviasse um de seus filhos para se casar com ela. "Dizem que você tem muitos filhos, e se você me enviar um deles, ele será meu marido..."

"Eu jamais faria um de meus serventes meu marido." Lara pensou, enquanto lia as últimas linhas, como era fácil imaginar o relacionamento que a viúva talvez tivesse com o vizir, tantos anos mais velho que ela, seu governador e, ainda assim — sob os seus orgulhosos olhos de realeza —, seu servente.

O desaparecimento de Anquesenamom da cena após isso não era nada menos que sinistro para Lara, e ela pensava o que a tumba dela — se, de fato, era para onde tudo isso estava indo — revelaria.

Por fim, Lara encontrou o que estava procurando e suas ruminações terminaram abruptamente. No beco escuro, uma placa maltratada de neon brilhava na sua frente: ÍBIS. Ao redor do nome, um bico curvo de pássaro. Esse era o lugar, e bem a tempo: ela estava sedenta e esperava conseguir uma cerveja. Ela empurrou a porta e entrou no bar.

Claramente não era a happy hour. O bar estava quieto, exceto pelo vago barulho de uma antiga televisão preto-e-branco no canto e o toque das peças de um jogo de xadrez, sobre o qual dois velhos estavam curvados no lado oposto. Ela conseguia ouvir a areia na sola de suas botas. Ela pediu uma cerveja ao lúgubre barista e se acomodou perto da porta dos fundos. Alguma coisa, ela tinha certeza, aconteceria ali.

"Você é uma estranha nessas áreas?"

Lara virou a cabeça em direção à voz, mais devagar do que o alerta normalmente teria causado. "Quem quer saber?", ela perguntou casualmente. O desconhecido ficou de pé em sua frente, um homem bonito, mais jovem que ela, ela deduziu, em um terno de linho branco e usando um velho chapéu panamenho, que agora ele tirou por respeito — ou condescendência, Lara não tinha certeza. "Você é o xerife dessa área?", Lara levantou uma sobrancelha e encarou os olhos negros do desconhecido.

"De forma alguma, querida," o homem riu. Então, ela percebeu pelo sotaque que ele era tão inglês quanto ela. "Como você está? Meu nome é Haggarty, Blade Haggarty." Haggarty — o nome na nota. O contato que havia traído Blackmore? Lara estava certa. "E você é..."

"Emily," Lara respondeu rapidamente. Ela não gostava nada desse sujeito. Ela sabia que tinha uma tendência de fazer julgamentos precoces; uma tendência que, ela lembrou a si mesma silenciosamente, já tinha salvado sua vida em mais de uma ocasião.

Para ser justo, o terno claro não indicava que ele tivesse acabado de descer por uma escada de incêndio às pressas, mas nunca se sabe. "Bem, Emily, o que te traz até Luxor?", ele sorriu mostrando seus dentes brancos.

"Apenas uma turista," ela respondeu.

"Interessada nas tumbas?" 

"Talvez." Ela encontrou a palavra certa para descrever a expressão no rosto dele. Malícia. Urgh.

"Talvez eu possa te mostrar o lugar?", ele ofereceu espertamente. "A essa altura, eu já sou praticamente um nativo por aqui, sabe. Eu trabalho para a Reuters, a propósito. Um trabalho de aluguel, digamos assim. Um trabalho de aluguel bem solitário." Ele piscou. Urgh, urgh, urgh.

"Obrigada, mas não," ela retrucou. Ela deixou algumas moedas sobre a mesa e checou o relógio. Algo não estava certo, e ela pensou que era melhor reduzir suas perdas. "Nossa, como está tarde. Estou cansada, sinto muito, mas tenho que ir. Foi um prazer," ela disse. Então, empurrou a cadeira para trás e seguiu em direção à porta dos fundos, para o beco ao lado do bar. Ela soube que não deveria ter feito isso no momento em que o fez — deveria ter saído pela frente —, mas era tarde demais. Ele tinha a seguido e bloqueado seu caminho.

"Não vá embora tão cedo, senhorita Croft," ele sibilou. "Eu não aguentaria ficar sozinho." Na escuridão azulada da noite ela pôde ver o brilho opaco do cano da arma dele. 

Será que ela conseguiria alcançar a dela? De nada adiantaria. Ela imaginou a explosão nesse estreito corredor de tijolos velhos. Má ideia. A última batalha dela — sentada à frente de uma tela de computador — passou pela sua mente. Isso jamais seria um problema naqueles jogos malditos.

"Me dê a caderneta."

"Que caderneta?", ela perguntou friamente.

"Não se faça de desentendida comigo, Croft," ele surtou. "Você não vai viver para se arrepender."

"Onde está Blackmore?"

"Ah, agora é sua vez de fazer perguntas, é?", Haggarty zombou. "Não acho que você esteja em uma boa posição para fazer isso, minha querida Lara, não é?"

"Por que perguntou meu nome se você já sabia?", ela perguntou calmamente.

"Eu queria ouvir você mentir. Você é muito boa nisso, eu acho."

"Você vai descobrir que sou muito boa em muitas coisas."

Ele não percebeu o pé direito dela saindo da escuridão, chutando a arma de suas mãos. A arma voou para longe, bem longe do alcance deles, mas ele não pensou duas vezes — saltou para cima dela, prendendo-a ao chão em virtude de sua altura e peso maiores.

Foi muito mais do que apenas isso. Lara lutou para se libertar, mas ele era muito forte; ele conseguiu imobilizar um braço dela, e ela podia sentir o cheiro de bebida no seu hálito e o ranço de seu suor. Ela bateu os dentes, tentando mordê-lo, mas ele se desviou e riu.

"Ah, Lara, mal posso esperar para ver em que outras coisas você é boa," ele rosnou. Todo o peso dele estava sobre ela, e agora ele colocou uma mão em sua garganta.

Ela sentiu a mão dele fechar sua traqueia e se debateu em desespero; nesse ritmo, ela não ficaria consciente por muito tempo. A sede de sangue brilhava nos olhos dele, mas a vitória tão próxima o deixou descuidado. Lara conseguiu espremer o outro braço sob suas costas e pegar a faca que sempre carregava consigo, confortavelmente aninhada em sua lombar. Seus dedos alcançaram o cabo enquanto o mundo começava a perder a cor.

Os olhos dele ficaram bem abertos em surpresa quando ela enfiou a lâmina na base do seu pescoço. Ele sequer grunhiu. Uma gota de sangue preto sujou seu terno branco e ela sentiu o calor da gota através de sua camisa. O punho dele relaxou e ela conseguiu rolar para longe.

Ela revistou seus bolsos. Ah, sua carteira. E, obviamente, quando ela a virou, as páginas faltantes da caderneta caíram, esvoaçantes. Lara caminhou para fora do beco e, quando finalmente se encontrou sob um poste de luz, se abaixou no pavimento e deu a primeira olhada a fundo na caderneta desde quando tinha a roubado dos arquivos. Será que ela conseguiria desvendá-la sozinha? Bem, ela não tinha outra escolha.

[ * * * ]

— V —

Percebendo que estava exausta demais para ficar em pé por muito mais tempo, Lara direcionou-se de volta para sua pousada após o encontro com Haggarty. Ela lavou o sangue de sua faca, de seu rosto e de suas mãos, e jogou as roupas sobre uma cama estreita. Apesar da agitação em sua cabeça, o sono tomou conta. Novamente, ela acordou antes do amanhecer, enquanto o sol ainda era uma fina camada de cor coral no horizonte. Antes de sair, ela desenterrou a pequena estatueta de Ísis de sua mala e a deixou sobre o travesseiro. Se esse não era o lugar ideal para um talismã, qual seria?

Ela descobriria para onde ir, pensou. Ao norte das tumbas, uma distância medida em passos; essa parte era fácil o bastante. O problema era depois disso, quando Carter — claramente desejando ter reservado sua descoberta para si mesmo — mudou para o quê parecia um sistema de medidas usado no Egito Antigo, baseado na forma como o sol gerava sombras em determinados momentos do dia. Ela não fazia ideia de como faria para decifrar isso. Quanto ao que havia acontecido a Blackmore, bem, ele não estava mais em uma posição que a pudesse ajudá-la novamente, então ela tentou afastá-lo de seus pensamentos.

Agora, como chegar ao Vale dos Reis? Ela não tinha como chamar um táxi. Felizmente, a resposta se apresentou sozinha quando ela se virou para a via Sharia al-Karnak. Um garoto em uma motocicleta — uma antiga Royal Enfield! Tinha sinais de desgaste, mas ainda era majestosa. Ele estava chegando, ela presumiu, para trabalhar em alguma cozinha nos arredores. Ele estava trancando a moto quando ela se aproximou.

"Salaam aleikum," ela disse.

Ele concordou com a cabeça, observando-a da cabeça aos pés cautelosamente.

"Bela moto," ela disse em inglês, apontando para a motocicleta. Ela desejara por um idioma universal de motos, e, naturalmente, parecia que ele existia: o garoto abriu um sorriso enorme e passou a mão sobre o farol.

"Pode me dar uma volta?", Lara disse, olhando para ele com olhos largos e apelativos. Ele retribuiu o olhar inexpressivamente. "Sabe, uma carona." Lara estendeu as mãos a sua frente, flexionou os joelhos e bradejou: "vrum, vrum! Uma carona."

"Carona!", o garoto disse, imitando ela, e voltou a sorrir. "Carona, claro, uma carona!". Parecia que ele não acreditava na sorte que tinha. Ele deveria estar preocupado em perder seu emprego, Lara ponderou seriamente, mas ela asseguraria que ele estaria de volta a tempo para não se atrasar para o trabalho. Ele subiu na moto e ela montou atrás dele, colocando seus braços ao redor da cintura do rapaz. Ele se virou para olhar para ela, sorrindo ainda mais. Até que ele era um rapaz bonito. "Vrum, vrum!", ele exclamou.

Ela não estava muito paciente, mas não queria machucar o garoto. Assim que começaram a ganhar velocidade, ela exerceu mais força ao redor dele e o derrubou da moto sem dificuldades; ele não pesava quase nada. Ele gritou quando caiu, e cambaleou, tentando correr atrás dela enquanto gritava algo que ela não seria capaz de entender, mas ao menos ele não estava ferido. Acelerando para se afastar dele, ela enfiou a mão no bolso e pegou um punhado de notas de $20, jogando-as para trás para que o garoto as pegasse. "Até mais", ela gritou ao vento, "muito obrigado!"

O vento batia por seu cabelo e logo o deserto se estirava à sua frente, dourado pelo sol nascente. Lara tentou manter a sensação de desespero sob controle enquanto seguia a rua até o Vale dos Reis. A caderneta, seguramente guardada em seu bolso, não trouxe as respostas que ela procurava; e agora o desaparecimento de Blackmore também pesava em sua mente. Ela tinha certeza que ambos eram peões no que estava se provando ser um jogo mortal.

Ao norte da tumba de Tutancâmon... enquanto o sol subia, Lara o usou para definir sua rota. Quando fez uma curva, entrou em alerta ao avistar um carro avançando em sua direção: um Land Rover velho, com vidros escurecidos. Parecia ocupar a rua inteira. Lara apertou a buzina da Enfield, sem efeito algum. A 20 metros de distância estava aparente que, seja lá quem estivesse naquele carro, não eram boas notícias para ela.

Lara saiu da rua e partiu para a areia, segurando-se firme na motocicleta. Com a maior parte da tração perdida, ela não poderia arriscar soltar o guidão para tentar pegar uma arma. Ela fez o melhor que pôde, mas o Land Rover estava percorrendo o deserto facilmente, com seus pneus cravando na areia enquanto os dela patinavam sem resultados. Enquanto tentava desesperadamente fugir, a roda traseira de Lara se desprendeu e ela saltou o mais longe possível para não ser esmagada. Ela jamais se lembraria de ter atingido a areia. O mundo escureceu ao seu redor.

Quando ela acordou, não havia sinal da moto e nem do carro. Ela levantou a cabeça cautelosamente e sentiu uma dor aguda nas costelas que a fez perder o ar. Bem, poderia ter sido muito pior do que uma costela quebrada. Todo o resto parecia estar intacto. Seu rosto e cabelo estavam grossos com areia e, quando ela tentou limpá-los, sentiu dor. Limpar a areia fazia o sangue ressecado correr novamente. Ela piscou até conseguir abrir os olhos e se sentou.

Quanto tempo tinha se passado? Ela olhou para o leste, onde o sol agora estava bem alto no horizonte; o céu tinha um tom pálido de azul. Olhando ao seu redor, ela notou que a paisagem do deserto parecia ainda mais desconhecida do que antes. Onde ela estava? Ela estava certa que tinha sido trazida até aqui. Escapar seria difícil, pois o terreno não era convidativo. Lara tinha um único cantil de água preso em sua cintura, e ela podia sentir o machucado onde ele bateu contra seus ossos. Sua garganta já estava seca, sua testa estava coçando por causa do calor, e o dia recém estava começando.

Foi então, ao olhar para a areia logo abaixo de onde estava, que ela percebeu um degrau. Ou melhor, uma superfície plana abaixo da areia que se parecia com... Ela se abaixou, limpou a areia do deserto sobre a superfície com as mãos e, em um instante, sentiu a pedra logo abaixo de suas palmas. Em sua mochila, ela tinha uma pequena pá dobrável, que ela pegou e começou a escavar o mais rápido que conseguia. O deserto branco queimava ao seu redor. Mas ela não se incomodou, apenas escavou.

[ * * * ] 

— VI —

Selos de argila. Já haviam sido violados uma vez, ao que parecia, e então reconstruídos novamente depois. Um cartucho de hieróglifos estava solto sobre a terra seca. O suor escorreu para dentro dos olhos de Lara, causando ardência quando ela piscou, mas ela sequer percebia isso ou a dor intensa em suas costelas. Ela tinha escavado por quase três horas e agora, isso... como ela havia encontrado isso? Ela pensou em Carter, escavando ano após ano, implorando por dinheiro e então encontrando a tumba repentinamente — bem, ela imaginou que talvez ele pudesse ter encontrado Tutancâmon mais rapidamente. Mas Lara sabia que não se tratava de sorte. Ela estava destinada a encontrar isso. Quem quer que tenha roubado as páginas da caderneta havia encontrado este lugar e trazido ela até aqui para... para quê? O medo de Lara desapareceu com a empolgação da descoberta. Seu coração batia fortemente em seu peito. Ela cuidadosamente dobrou sua pá e a colocou de volta na mochila, então se levantou diante da porta. Ela não reconhecia o que estava sentindo de início, mas depois considerou que talvez fosse reverência.
 
A argila se esfarelou facilmente sob sua mão. As portas da tumba abriram com uma facilidade assustadora; elas não fizeram barulho algum, como se tivessem sido lubrificadas na noite anterior. Após atravessar as portas, ela se encontrou em um longo túnel de pedra, frio como uma caverna. Ela tremeu conforme o suor começava a secar e sacou a lanterna de sua cinta. Vinte passos depois, um segundo lance de portas e mais selos de argila. Ela olhou para eles, apontando a luz da lanterna e pensando nos séculos e séculos que estiveram na escuridão. Um arrepio passou por sua cabeça e ombros, e ela se lembrou de algo que haviam lhe dito quando era uma garota: isso significa que alguém está caminhando sobre seu próprio túmulo.
 
Novamente, ela violou os selos antigos. Não havia outro caminho a seguir a não ser em frente. As portas se abriram e quando o homem com cabeça de chacal saltou em direção a ela, ela gritou. "Maldição!"
 
A madeira enegrecida da estátua, ressecada após eternidades abaixo da superfície do deserto, rachou quando caiu ao chão de pedra. Anúbis, o deus da morte, havia ficado de guarda dessa tumba por todo esse tempo, e Lara havia praticamente caminhado diretamente para seus braços. Se puxando para sair de baixo dele — a figura era quase tão grande quanto ela —, ela apontou a luz para o seu rosto cuidadosamente esculpido, com longos olhos folheados a ouro. Belo e imóvel, ele estava ao lado dela, com orelhas aguçadas como se estivesse prestando atenção. O coração dela palpitou. O olhar dele não encarava o dela; era apenas uma estátua. Lara levantou-se e continuou caminhando.
 
Uma antecâmara, repleta de bens de sepulcro. Botes, camas, e garrafas; alabastro, ébano, e ouro. Lara precisou lembrar a si mesma para respirar enquanto observava os objetos, alguns estavam esmagados e misturados. Os selos reconstruídos: outra pessoa já esteve aqui, bastante tempo atrás. Que tipo de ar antigo ela tinha em seus pulmões? Tinha um cheiro seco de poeira e de madeira velha.
 
As paredes da primeira sala eram brancas, lavadas com lima, ela presumiu. Mas então, atrás de outra porta, mais selos. Não dê atenção, Lara disse a si mesma, apenas atravesse a porta. Do outro lado, tudo era diferente. Aqui, o chão estava praticamente limpo, e era fácil para ela caminhar, e as paredes estavam repletas de pinturas e de inscrições de figuras, tão claras como no dia em que foram feitas:
 
"Temam e tremam, ó violentos que estão nas nuvens tempestuosas do céu. Ele partiu a terra pelo que sabia no dia em que desejou chegar lá."[9]
 
Então ela viu algo. Ela apontou a lanterna para dentro da câmara e a pequena luz atingiu um pequeno canto arredondado de pedra. Brilhante e preta como basalto. Estava cercada de blocos de pedra esmagados, como se tivessem sido quebrados com uma marreta. Eram os restos de um caixão externo retangular, destruído pelos saqueadores que devem ter passado por aqui antes dela. Lara piscou e olhou novamente, para ter certeza. O que aconteceu com esses ladrões? Ela não pôde deixar de pensar na maldição gótica citada por Corelli. De alguma forma, aquela calma com a qual ela havia desprezado tal maldição de dentro da tranquilidade dos arquivos do The Times não retornava. E, mesmo assim, ela caminhou até o sarcófago. Deitado, tinha a altura do torso dela. Ela precisou ficar na ponta dos pés para observar o rosto de pedra.
 
Era largo e impassível, indecifrável. E mesmo assim as características, pelo que lhe pareciam, eram certamente femininas. Havia uma delicadeza na boca e nos olhos, e até mesmo, Lara pensou, certa tristeza. Ela apontou a luz ao redor da beirada do sarcófago e quase que instantaneamente viu o cartucho que ela acreditava que jamais veria: Anquesenamom. Ela sorriu na escuridão, então avistou o grande escaravelho de esmeralda afixado no peito do grande caixão.
 
Lara estendeu a mão para tocá-lo. Estranhamente, parecia estar quente para seus dedos. Não, realmente estava quente: ela tocou o sarcófago e então o escaravelho, alternando entre os dois algumas vezes. Ela não estava imaginando isso. Abaixo de seus dedos, ela também pôde sentir os arranhões na pedra, como se alguém já tivesse tentado arrancar a joia sem sucesso. Era essa a joia da qual a caderneta falava? Qual era seu poder? O ceticismo inerente de Lara extravasou como areia para fora de um vidro. Era difícil para ela não acreditar em nada diante disso. Ela esticou as mãos, pronta para pegar a joia, quando ouviu um clique familiar e arrepiante atrás de si. 
 
"Nem mais um centímetro, senhorita Croft. Não se você tiver qualquer carinho por sua cabeça."
 
[ * * * ]
 
— VII —
 
Lara congelou. Ela podia sentir a mira da arma apontada em sua direção — era como ser observado por alguém, mas muito pior. Ela não teria chance para pegar sua arma. Pôde apenas ficar parada e observar a grande figura de Alvin Blackmore conforme ele emergia da escuridão para ficar de frente a ela sobre o sarcófago da rainha de Tutancâmon.
 
"Parabéns, Lara," ele disse. "Mesmo que tenha sido necessário te ajudar naqueles últimos passos para chegar até a tumba. Ainda assim, eu não poderia te privar do prazer da descoberta. E, honestamente, hoje em dia, estou velho demais para tanta escavação."
 
"Imagino que você não tenha sofrido um ataque cardíaco," Lara disse.
 
"Saudável como um touro, querida!", ele gargalhou. O eco rebateu pelas estreitas paredes de pedra da câmara, e ele bateu sua mão carnuda em seu peitoral largo. "Nunca estive em melhor forma. E melhor ainda, para ver você pela última vez."
 
"Você não vai se dar bem, Blackmore," ela disse.
 
"Por que não? É claro que vou. Você roubou o caderninho do Carter, disso tenho certeza, e você não o teria feito se alguém soubesse que ele existia. Então agora apenas duas pessoas sabem sobre ele. Com o Haggarty eu estava disposto a me arriscar, pois imaginei que você acabaria com ele e fico grato que você não me decepcionou. Mas, sério, quando eu vi o que estava em jogo, não poderia deixar você andando por aí e fazendo um tumulto sobre isso."
 
"Então por que não me matou imediatamente? Por que me trazer até aqui e deixar eu encontrar a tumba?"
 
"Como eu disse, eu queria que você se divertisse um pouco antes de partir, Lara. Seria cruel de qualquer outra forma, não acha? Mas eu não assassinaria a bem conectada Lara Croft a sangue frio em Londres. Seria uma morte improvável para você. Agora, se Lara Croft morresse no colapso de uma das últimas tumbas ocultas do Egito... Sim, isso faria sentido e ninguém pensaria em fazer qualquer tipo de pergunta embaraçosa."
 
"É, acho que não," Lara admitiu.
 
"É uma pena, na real. Eu gosto de você. Te admiro. Você é esperta, embora um pouco ingênua. Eu acho que você não seria capaz de resistir às promessas de Anquesenamom, o tipo de coisa que faria qualquer pessoa jogar todas suas preocupações para o ar, não é?"
 
"Pelo que parece," Lara disse. "Então você acredita nisso, na promessa de vida eterna?"
 
"Bem," Blackmore disse, "não há mal em tentar, há? E mesmo que seja tudo bobagem, você viu os tesouros. Eu nunca acreditei na triste filosofia de que dinheiro e fama não são capazes de comprar a felicidade. Eu sempre percebi que, pelo menos no caso do dinheiro, é exatamente o oposto que é verdade."
 
"Sua irmã te conhece melhor do que você imagina, sabe. Ela disse que nada jamais seria o suficiente para você."
 
"Cornelia? Você falou com a Cornelia? Querida Cornelia, como ela está? Eu pediria para você mandar saudações minhas, mas agora é tarde demais." Blackmore sorriu e, mantendo a arma apontada para Lara, estendeu-se para pegar a joia engastada no sarcófago. A sua voz estava trêmula com animação enquanto ele recitava a última página da caderneta em sua posse. "Quem quer que clame a joia do peito da viúva descobrirá que Rá nunca se põe para ele ou para sua geração," ele entoou. "A vida eterna dele será, assim como o Nilo cresce e flui eternamente em seu banco majestoso." E ele envolveu os dedos ao redor da esmeralda e a removeu de seu lugar.
 
Instantaneamente, ela brilhou com uma luz branca tão clara que Lara sequer conseguia ver os ossos da mão de Blackmore. O rosto dele resplandeceu, iluminado e sombreado pela luz não natural. Lara começou a tremer, mas se manteve estoica, e quando falou sua voz estava quase tão firme quanto ela desejara. "Você nunca viu a última página, não é, Blackmore?"
 
"O quê?" Os olhos dele estavam em chamas, ele parecia tomado por algo inumano e terrível.
 
"Quem quer que clame a joia do peito da viúva descobrirá que Rá nunca se põe para ele ou sua geração. A vida eterna dele será, assim como o Nilo cresce e flui eternamente em seu banco majestoso. Se ele for digno, essa recompensa virá; se a alma dele pesar na balança, a retribuição dos deuses certamente chegará."
 
Mais tarde, quando Lara tentasse explicar o que aconteceu a seguir, ela descobriria que sua facilidade com palavras a deixaria na mão. Tentando exemplificar, era como se escrevesse repetidas vezes a mesma coisa, e então amassasse cada nova tentativa para jogar no lixo. 
 
As imagens saíram das paredes. Elas tinham se desprendido sozinhas e corrido até eles. Não da mesma forma que ela tinha imaginado a estátua de Anúbis se movimentando anteriormente, mas correndo com seus braços estirados e olhos negros ardentes, suas formas planas transformadas em carne.
 
Hórus, com sua cabeça de águia, apenas um olho, justo e terrível. Osíris, com as coroas do Alto e Baixo Egito sobre sua cabeça, condenado como um deus para governar os mortos. Sua esposa-irmã Ísis, com seu rosto forte realçado pela dor da perda. E, atrás de todos eles, uma figura tão terrível que Lara sentiu o ar ser arrancado de seus pulmões simplesmente ao olhar para ela.
 
Homem ou besta, era impossível de se dizer. A cabeça era de um animal saído de um pesadelo, com grandes presas, olhos impetuosos, lodo e mau hálito; o fedor da morte. Parecia que essa figura que estava no comando enquanto as demais criaturas se viraram contra Blackmore e o dilaceraram em inúmeros pedaços. O cheiro de carne humana queimada dominou o ar seco da tumba.
 
Lara teria dificuldades em decidir se incluiria o próximo detalhe em sua história: ela desmaiou. O que ela lembra eram as sombras se transformando em uma teia de aranha, um ninho que a encasulou e a carregou para fora da tumba, deixando-a jogada no deserto. Quando ela abriu os olhos, ela viu — ou sonhou? — com a cabeça bestial de Seth pairando sobre si com um aviso antes de sumir em forma de névoa. A morte surge em asas para aquele que entra na tumba de um faraó.
 
Sua cabeça estava apoiada na areia quente. Lara sentou-se. Sua costela estava doendo mais do que nunca, mas ela era capaz de tolerar. Na distância, ela avistou uma névoa de fumaça que indicava a posição da cidade. Ela se virou e começou a caminhar naquela direção. Bem, ela certamente teria algo para contar para Jeremy quando o encontrasse no lugar onde suas pistas a levariam. Ela pensou se ele algum dia ele tentaria enganá-la, mas talvez não fosse essa a questão. Ela apressou o passo sob o calor do deserto. Ela realmente estava ansiosa para encontrá-lo.

[ * * * ]

— Apêndice —
Notas do tradutor


1. Uma referência a Robert Falcon Scott, oficial da marinha britânica que liderou duas expedições para a Antártida e faleceu, ao lado de sua tripulação, na segunda. É uma figura controversa na história britânica, mas acredito que o pressuposto desdém de Lara para cogitar esse nome para seu livro seja por conta da sua própria expedição no continente gelado em Adventures of Lara Croft.
 
2. Analisando a história como um todo, esse personagem é completamente dispensável — e um "padrinho" nunca foi citado em qualquer biografia de Lara. Suspeito que seja apenas uma referência ao fundador da Core Design, Jeremy Heath-Smith.

3. Tesouros do Museu do Cairo é um livro publicado em 1970, conforme listagem na Amazon. Também está disponível para aluguel no portal archive.org.

4. Howard Carter foi o arqueólogo inglês creditado pela descoberta da Tumba de Tutancâmon, em uma série de expedições financiadas pelo aristocrata Lorde Carnarvon. A título de curiosidade, quando Carter mandou a mensagem pedindo para que seu patrono partisse para o Egito para a abertura da tumba, tinha visto o tesouro por um furo na parede, e simplesmente escreveu: "Coisas maravilhosas." — a mesma mensagem críptica que Lara recebeu por fax neste conto. Carnarvon morreu cinco meses depois, alimentando o mito da maldição dos faraós.

5. Xenofonte de Atenas foi um filósofo da Grécia antiga.

6. Os Mármores de Elgin correspondem a uma enorme coleção de esculturas removidas do Partenon e arredores, na Acrópole de Atenas, e levadas para o Museu Britânico numa alegada tentativa de proteger o patrimônio da invasão turca. Até hoje o governo grego tenta, sem sucesso, repatriar seus artefatos.

7. Anquesenamom foi filha do faraó Aquenáton e da rainha Nefertiti, e vítima do patriarcado. Quando criança, supostamente casou-se com seu pai após a morte da rainha, e, quando o faraó morreu, casou-se com o meio-irmão que ascendeu ao trono, Tutancâmon. Nove anos mais tarde, quando ela tinha cerca de 21 anos, o garoto-rei faleceu e ela então tornou-se esposa do sacerdote Aí, antes de desaparecer dos registros conhecidos. Sua tumba nunca foi encontrada. Na tumba de Tutancâmon foram encontrados dois fetos mumificados — acredita-se que sejam filhos dela pois não existem registros de outras esposas para o garoto —, e um trono dourado adornado com uma imagem do garoto-rei ao lado de sua esposa.

8. Parte de uma estela encontrada no Egito com inscrições em três idiomas distintos. Historiadores deduziram que tratava-se de uma única mensagem e foi a partir do estudo da pedra que os misteriosos hieróglifos egípcios foram decifrados.

9. Essa é uma citação direta de um dos Textos das Pirâmides, entalhados no interior da Pirâmide de Saqqara. Posteriormente surgiram os Textos dos Sarcófagos e, por fim, o Livro dos Mortos. No caso em questão, a autora do conto citou o encantamento 254 (versos 281a e 281b), mas a tradução para o inglês pode não ser tão fácil quanto imaginado. No conto original, o texto diz "Fear and tremble, you violent ones who are in the storm clouds of the sky. He split open the earth by means of what he knew on the day when he wished to come there." (algo como "Temam e tremam, ó violentos que estão nas nuvens tempestuosas do céu. Ele partiu a terra pelo que sabia no dia em que desejou chegar lá."). Entretanto, de acordo com o site Sacred Text Archive, o encantamento diz "O, be afraid, tremble, ye criminals, before the tempest of heaven; he opened the earth with that which he knew, on the day he loved to come." (algo como "Ó, temam, tremam, seus criminosos, perante a tempestade do céu; ele abriu a terra com aquilo que sabia, no dia em que ele gostaria de ter vindo."). Por se tratar de um texto religioso, a interpretação acaba sendo reflexiva e pessoal, mas diz respeito à chegada do falecido ao céu. Admito que até comprei uma edição do Livro dos Mortos do egiptólogo Ernest Wallis Budge mas, para minha decepção, nada parecido com essa frase está presente no livro, feito a partir dos pergaminhos do escriba Ani, então não tenho uma tradução mais adequada para oferecer como referência aqui. Ainda assim estou feliz, pois a extensiva pesquisa que fiz, com o único propósito de buscar uma tradução adequada para esse conto, me deu um entendimento e apreciação maior da cultura do Antigo Egito.
 
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Texto original de Erica Wagner, traduzido por @thetreeble para o blog Raider Daze e compartilhado sem fins lucrativos e sem intenção de violação de quaisquer direitos. Publicado originalmente no jornal britânico The Times em 1999.